Surdos, cegos, deficientes físicos ou doentes mentais: Rússia recruta inválidos para enviar para a linha da frente na Ucrânia

A Rússia tem convocado pessoas com deficiências para a linha da frente na Ucrânia: é o caso de Andrei Alexandrovich Gubanov, a quem foi entregue uma intimação, por escrito, para se apresentar num ponto de encontro em duas horas. Quando compareceu à consulta, foi informado de que havia sido mobilizado, embora não tenham explicado para onde – dois dias depois, o Kremlin ordenou ao exército que avançasse sobre a Ucrânia.

Aos 45 anos, Gubanov nunca havia tocado numa espingarda: era um simples trabalhador rural que os escritórios de recrutamento russos ‘raptaram’ para enviar ilegalmente como carne para canhão para o campo de batalha ucraniano. Gubanov foi integrado num “batalhão de suicidas”, como ficaram conhecidas essas unidades sem treino militar – um ano antes, os médicos removeram um dos seus pulmões para impedir o crescimento do cancro. Mas não foi o único, segundo o jornal espanhol ‘El Confidencial’: o Kremlin convocou doentes com cancro mas também deficientes, convalescentes, coxos, doentes mentais e até cegos.

Antes de ser mobilizado ilegalmente, Gubanov operava um trator no campo. O prognóstico da sua doença era benigno mas ficou marcado uma revisão clínica em março que nunca aconteceu: a 4 de setembro, Gubanov e outros homens da sua unidade foram capturados facilmente pelos ucranianos. “Desde que foi preso, não tivemos mais notícias. Tentámos entrar em contacto com a sua unidade e eles disseram que iam procurá-lo. Até hoje ninguém disse nada. Levaram-no sabendo que tinha apenas um pulmão e o seu estado poderia piorar”, denunciou a sua mulher, Elena. “Não puderam recusar porque foram ameaçados de prisão.”

Soldados cegos enviados para a linha da frente na Ucrânia

Até invisuais foram enviados para a linha da frente. “O meu filho Konstantin Sokolskij foi raptado a 12 de outubro quando voltava do trabalho”, acusou a mãe, Svetlana Vladimirovna Sokolskij. O homem de Makéyevka, no oblast de Donetsk, controlado pela Rússia, passeava pela rua quando foi abordado por vários polícias que lhe mostraram a ordem de mobilização e empurraram-no para um veículo.

Dias depois foi enviado para a frente. Não foi relevante que Sokolsij sofresse de ceratocone, uma patologia ocular degenerativa que deforma a córnea e prejudica a visão. “Não fizeram nem um exame médico para confirmar que ele está praticamente cego”, garantiu a mãe. De um dos olhos não vê absolutamente nada e pelo outro vê apenas silhuetas. Os próprios médicos militares russos atestaram, em dezembro do ano passado, que sofria de uma grave doença da córnea. Mas, em vez de mandá-lo para casa, quiseram utilizar agudo sentido de audição para tarefas militares auxiliares.

“Colocaram-no a tecer redes de camuflagem. A fazer escovas para limpar os canos das armas e fornecer munição aos combatentes. Depois ficou encarregue de alguns aparelhos que amplificam o sinal de aviões tripulados”, revelou a mãe. O exército russo procurou pessoas com audição excecional para captar a presença de drones perto das suas posições. Após três meses na linha da frente, e como consequência do stress, da hipotermia e do trabalho nas trincheiras, Sokolsij ficou ferido: a pressão intracraniana aumentou e sofria de fortes dores de cabeça. Foi encaminhado para o hospital e informado que se não for operado perde a visão restante. A 2 de maio, foi chamado de novo para uma nova ronda para a linha da frente.

A mãe perguntou os oficiais como “esperavam que um inválido cego participasse nas hostilidades”. E o que responderam? “Vencemos a Grande Guerra Patriótica porque até os cegos de levantaram naquela época para lutar contra a invasão fascista. Se o cego contribuiu para a vitória há 80 anos, o seu filho também pode”, acusou a mãe.

Muitos desses homens ‘escolhidos’ pelas autoridades militares vêm dos territórios ocupados de Donetsk e Lugansk. Para Anatoli Fursov, empresário e advogado russo perseguido pelo Kremlin e exilado na Espanha, as comissões médicas têm a última palavra na definição de quem está apto a servir o exército. “Nas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, começaram a fazer recrutamento em massa antes mesmo do anúncio da mobilização geral da Rússia.” O especialista denunciou ainda que as comissões médicas foram pressionadas a reconhecer todos os homens como aptos e, como “prospera a corrupção nas Forças Armadas russas”, “se um recruta tem dinheiro, pode pagar um suborno e evitar ser enviado para a frente”.

Galina Sergeevna Dubinina foi a autora de nova denúncia: o marido foi mobilizado quando estava prestes a completar 46 anos e partiu para a guerra com o corpo inteiro coberto pelas manchas vermelhas e escamosas típicas da psoríase. E o problema é que foram recrutados indivíduos com doenças como SIDA, sífilis ou diabetes – soldados e oficiais feridos em combate muitas vezes apodrecem vivos em Donetsk ou Lugansk, porque a Rússia carece de meios ou determinação para fornecer-lhes assistência médica.

Nenhum dos combatentes referidos foi indemnizado pelo Kremlin, apesar das promessas de compensação económica – não reconhecer a morte ou a captura de um recruta é uma excelente desculpa para Moscovo fugir aos pagamentos.

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